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O farmacêutico e a Epidemia de Opioides

Alexandra Calado

Assisti recentemente a um documentário na Netflix chamado: The pharmacist.

Farmacêutico — Photo by Kendal on Unsplash


O que posso dizer sobre este documentário onde um farmacêutico levou a cabo a sua profissão muito mais além do que o suposto mas pelas melhores razões?
Dan Scheinder, o herói que de coração aberto que com todo o seu humanismo conta a história da sua vida com recurso a algo muito específico e único: centenas de gravações que vão acompanhar o documentário todo entre relatos emocionados, conversas, choros, orações.

Cassetes — Photo by Muhammad Haikal Sjukri on Unsplash


A verdade é que a tragédia da sua vida mudou-o o que resultou num evento de acontecimentos impressionante. Neste documentário entre o assassinato do seu filho Danny que demonstrava ser um miúdo adolescente normal mas que se descobriu ser viciado em crack (cocaína em forma de cristais), foi assassinado num local onde a família nunca pensou em encontrá-lo, a verdade foi dura e crua e graças a uma investigação particular com muita persistência, horas, dias a fio, telefonemas, entrevistas, caça ao homem falhada, testemunhas falhadas e uma profissão na área da saúde que lhe permitiu colocar os pontos nos “is” abriu caminho para uma descoberta chocante ( na altura em 1999) : o crack não se tornou o principal problema numa altura em que algo muito mais grave tomou conta da população, a época em que a crise dos opioides tomou conta de dezenas de vidas Americanas, este homem estava lá e não se limitou a ser um mero peão no que parecia se ter tornado num pesadelo sem fim. A tragédia de vida com a morte do seu filho ligou-o ao combate às drogas o que acabou por ser a salvação de muitas pessoas. Ainda assim dezenas de pessoas inocentes foram arrastadas para um vício que parecia não ter fim, principalmente Robbie um rapaz crucial na investigação de Dan que acabou envolvido no esquema médico por de trás do que seria um simples tratamento para dor. Foi a ação de Dan que como farmacêutico e ser humano que acabou por ajudar este jovem a livrar-se de um possível final infeliz. Como uma bola de neve muitos casos não tiveram a mesma sorte.

Oxicodona

O nome do opioide e o nome do milagre para a dor. Um milagre duas vezes superior à potência da Morfina.


Comprimidos — Photo by Sharon McCutcheon on Unsplash



Mas afinal qual é o efeito deste tipo de medicamentos opioides?

Da maneira mais simples possível de explicar são medicamentos psicoativos, que se caraterizam pela sua atuação a nível do Sistema Nervoso Central onde a função cerebral do ser humano é alterada , bem como a perceção, o comportamento e a sua consciência. O que estes medicamentos fazem não é tratar a dor na palavra propriamente dita, eles proporcionam alívio de certa forma porque mudam a forma como a pessoa se sente em relação à dor, ou seja, a perceção e tolerância à dor é alterada. Estes medicamentos devem ser prescritos para casos específicos que incluem entre outros, a dor crónica, doenças terminais mas nunca como uma primeira linha de tratamento.

A prescrição de Oxycodin esteve sempre na primeira linha nos milhares de casos retratados, onde a euforia desencadeada por esta substância virou catástrofe.

Euforia e Indústria Farmacêutica

A sensação de euforia é um dos principais efeitos da toma destes medicamentos que vem acompanhada com uma sensação bem-estar, um dos efeitos colaterais bem conhecido e que os usuários descrevem como sendo similar à sensação posterior à toma de Heroína. Outro dos efeitos colaterais são diminuição do batimento cardíaco e sedação. A euforia produzida por essas substâncias é um dos principais motivos que levam não prescrição dessas substâncias, o que resulta no elevado grau de abuso e dependência. Mas não foi motivo suficiente para evitar crise de opioides que abateu a América, muito pelo contrário. De forma chocante é possível perceber no documentário que a indústria farmacêutica responsável pela produção de Oxycotin: Purdue Pharma, defendeu que este medicamento não causava dependência, e que os tremores, suores e desespero que os pacientes sentiam ao não tomar o medicamento era simplesmente por sentirem dor e desta não estar a ser combatida. Mas a verdade é que a empresa não estava a analisar a gravidade da situação nem a se preocupar minimamente com os efeitos deste medicamento. Depois de um minuciosa investigação à família Sackler proprietária da Indústria farmacêutica, descobriu-se através de trocas de e-mails que o único interesse da empresa era unicamente monetário.


Risco de dependência

Quando uma receita deste tipo é adequadamente prescrita para as situações designadas e durante um período de tempo sempre com acompanhamento médico é um caso, mas sabemos que os riscos de dependência são elevadíssimos. Na altura a FDA ( Food and Drug Administration, agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos) conseguiu aprovar na bula deste medicamento a descrição irrisória que este medicamento tinha um risco muito baixo de causar dependência, para uma afirmação destas se confirmar verdadeira, a autoridade que permite as afirmações que constam na bula do medicamento deve sempre comprovar a veracidade das afirmações e com isto refiro-me à realização de vários tipos de testes. Pois bem, uma falácia que aos olhos da indústria produtora teria um grande efeito a nível comercial. Foi a cereja no topo do bolo.


Colapso

Só no início de 2001 a realidade caiu aos pés da América, estranhos casos de overdose começaram a acontecer no estado de Nova Orleães, centenas e centenas de pessoas morreram. A taxa de overdose naquela zona tornou-se superior à taxa de overdose comparada com a América inteira. Descobriram então que todos esses casos estavam ligados ao abuso da substância Oxycotin e curiosamente todas as receitas eram prescritas pela mesma médica. Nesta situação o medicamento era prescrito sem qualquer controlo médico e reavaliação da condição física. Impressionantemente, a médica que estava por detrás deste golpe limitava-se a prescrever sempre a dose mais alta desta medicação junto com dois outros medicamentos com efeitos sedativos, estes três medicamentos são designados por Santa Trindade. Não pelas melhores razões. Durante um ano esta médica prescreveu mais de 200,000 receitas de Oxycotin. Ao início tudo corria lindamente, o lucro da indústria era garantido com uma boa margem na altura e a indústria enchia os bolsos e erradamente conduzia os seus vendedores com discursos sobre um milagre para a dor que proporcionava um alívio durante 12h e com probabilidade de apenas de 1% de causar dependência. Jornais, cartazes, notícias, espalhavam a palavra do diabo disfarçado de anjo. A DEA (Drug Enforcement Administration- órgão da polícia federal do Departamento de Justiça dos Estados Unidos encarregado da repressão e controle de narcóticos) na altura secretamente seguia uma investigação, recolhendo diariamente receitas em inúmeras farmácias que foram prescritas pela médica em questão, um processo demoroso que no final resultou em nada porque na altura o procurador recusava-se a ir atrás da classe médica, colocando-a num pedestal inatingível e incorruptível. Era preciso encontrar uma prova irrefutável.


Prova irrefutável


Na altura o Farmacêutico Dan tirou uma licença temporária para investigar por conta própria a médica, uma vez que começou a perceber que havia muita afluência a este tipo de medição mas rápido percebeu que deveria regressar ao local que lhe poderia dar acesso a esse prova, à farmácia. Quando finalmente Dan teve acesso a uma receita prescrita com a dosagem de 80mg de Oxicodona a uma adolescente de 16 anos, tudo mudou. Dan conseguiu finalmente dar um passo importante no combate ao uso indevido de opioides, a licença médica desta médica pediatra foi retirada, o caso enrolou um ano até ir a julgamento. Algum tempo antes do julgamento eis que a médica sofre um acidente de carro ao qual mal sobreviveu, derivado a esta situação, as suas acusações passaram de 36 para 1. Com uma pena suspensa de 3 anos.

Afinal, quanto valem as vidas daquelas pessoas às quais ela “assassinou” a vida? Pessoas inocentes que só procuraram um alívio da dor, sem saber que a dor era o pior dos males que iriam enfrentar.


Sistema corrompido

Depois desta médica ter sido impedida de exercer a sua profissão, os pacientes não desaparecem, muito pelo contrário a demanda aumentou e com a faca e o queijo na mão, muitos profissionais de saúde, já convertidos em vendedores de droga de bata branca viram a oportunidade, e subitamente começaram a abrir clínicas todas as semanas no estado de Luisiana, afinal não era muito difícil na altura.

Dan pensava ter melhorado o sistema mas como se combate um vício assim que corrompeu meio mundo ?

Foi então que Dan teve a ideia de implementar um sistema de controlo de receitas a nível das farmácias que foi aprovado e a prescrição de opioides ficou substancialmente reduzida. Uma batalha tinha sido ganha mas não a guerra, pois com a diminuição da oferta no mercado de Oxicodona, os gangues traficantes viram uma “bola de ouro” e quem estava dependente procurou a forma mais barata e disponível nas ruas, uma crise levou a outra e a Heroína reinava. Descobriu-se que 75% destas pessoas já tinham começado por consumir Oxycotin.


Cortar o problema pela Raiz

Após início de outra crise provocada por drogas, Dan chegou à conclusão que só havia uma maneira de terminar com ela, era cortar a raiz do problema. A verdade é que nada disto tinha acontecido desta forma se em primeiro lugar a o Oxycotin não tivesse sido visto como um medicamento milagroso com 1% de risco de causar dependência. Embora na altura muitos médicos não tivessem caído nesta falácia e de nem todos renegarem a sua profissão para se deixar levar pela ideia de um possível negócio altamente lucrativo, a verdade é que a gravidade da situação era imensurável e alguém tinha que fazer alguma coisa. Muitas outras pessoas se juntaram à causa, não só no estado de Luisiana, mas em toda a América começaram a surgir profissionais de saúde a quererem processar a Purdue Pharma . A indústria farmacêutica afirma que não forçou ninguém a desviar a sua ética profissional e humana (quando eles próprios estavam longe de representar um bem maior em prol da saúde humana). Em 2007 quando tudo parecia mudar e quando a empresa foi finalmente processada por meio de inúmeras tentativas e 2000 casos contra conseguiram finalmente combater os 13 biliões que se opuseram a qualquer chance de vencer a guerra instaurada. Com um pagamento de 600 milhões de euros em multa a empresa limpa as mãos e arregaça mangas e em 4 anos duplica os seus lucros. Mais uma vez, a indústria saiu por cima num enrolar de eventos completamente contraditório, a mesma empresa até se chegou a oferecer para ajudar a combater o vício provocado pelos opioides que a própria fabricava.


Reflexões

Este é um documentário deveras marcante, onde pessoas que estiveram à beira de morte relataram que o vício é sempre mais forte do que a preocupação de morrer. Pessoas reais e testemunhos de pessoas que viveram tudo em primeira mão. Recomendo vivamente a visualização deste documentário que não é só de interesse para os profissionais de saúde mas para todas as pessoas terem uma noção do ‘perigo’ do uso de certas e determinadas classes de medicamentos usados para o alívio da dor, obviamente destas classes muito específicas que são os opioides. Infelizmente, este documentário retrata uma situação que nem sequer deveria ter existido, muito para além de humana, uma epidemia cujo problema residiu no topo da cadeia de cuidados de saúde, cuja ética profissional e humana ficou totalmente corrompida pela ganância, onde claramente a indústria farmacêutica foi a personagem principal num filme de terror. Embora a indústria tenha declarado bancarrota em Setembro de 2019, esta nunca foi criminalmente acusada pelo seu papel na crise de opioides. O que me leva a questionar enquanto ser humano e profissional de saúde:

  • Até onde chegará a ganância do ser humano e a que custos para a saúde da humanidade?

  • Até que ponto um sistema de indústria farmacêutica deixará de ser um patamar fundamental na saúde da humanidade para se tornar o oposto?

Uma questão extremista mas lógica uma vez que em pleno Séc. XXI isto aconteceu. O importante é saber até que ponto centenas de pessoas de uma instituição de saúde se podem deixar corromper de uma forma inacreditável. O que me leva às duas questões seguintes.

  • Até onde o dinheiro constituirá a torre de salvação dos que não devem ficar impunes ?

  • Até onde podemos encontrar os princípios fundamentais do ser humano?

400mil pessoas morreram na América devido a esta epidemia que só foi considerada epidemia 10 anos após Dan ter notificado que algo estava a acontecer. 400mil, mas poderiam ter sido muito mais. O mundo deve estar alerta para os sinais de uma problemática que não escolhe hemisférios. Felizmente ainda existem pessoas humanas e heróicas que são capazes de fazer a diferença, eu aplaudo de pé este homem que por muitos contratempos que tenha sofrido nunca deixou de lutar pelo que estava certo mesmo quando todos colocaram a sua sanidade em cima da mesa. Como se costuma dizer, mais vale tarde do que nunca e nesta situação, felizmente, a chapada maior foi para a ganância que de mãos dadas com a credibilidade perdida em medicamentos milagrosos conseguiu ver os dias de ouro fugirem, embora muitos anos depois, num espaço onde reinou o humanismo, algures no meio da névoa do significado da vida.

Photo by Ron Smith on Unsplash


Ao túnel da Esperança de Dan e ao da humanidade.



 


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Sobre mim

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Apaixonada pelo mundo, pela vida, poesia e fotografia.

 

Autora dos livros de poesia:

Jardim da Minha Alma publicado pela PoesiaFãClube e Rota das Andorinhas.

 

© 2023 por Alexandra Calado. 

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